segunda-feira, 24 de janeiro de 2022


 

É noite,as sombras encolhem-se,as gavetas abrem-se e fecham-se guardando os despojos do dia. O corpo despe-se,
a pele, reage arrepiada, enrola-se sobre si com uma mudança
extraordinária. O espelho olha como se observasse, mudo, ele mesmo o espectador da transformação embacia-se para
ele mesmo preservar que o outro olhar não caia na tentação de se olhar para si e perguntar: Espelho,espelho meu,quem mais senão eu?...
A pergunta fica suspensa, olha-se de modo diferente,o corpo arrepia-se,os lençóis entreabertos esperam-na,deita-se à procura da segunda pele,um pijama de seda jaz em cima da cama, é tarde, no silencio apercebe-se que só lhe resta olhar e observar-se na transformação. O corpo é outro,o rosto sendo conhecido não combina...o cabelo, penteia-o como se fosse noiva de altar. O corpo estranha, o rosto é apenas uma performance. O que sobra é apenas o reflexo do espelho parecendo
sussurrar: Espelho,espelho meu,quem mais do que eu?...O corpo e o rosto espantam-se,sobre a cama apenas o que sobrou do dia quando tudo se apaga e se esquece...






Célia Maria Cavaco, In DESVIOS