sábado, 23 de outubro de 2021



Regressou àquele lugar vazio, preenchido pelas memórias de ambos. Entrou de rompante, a porta e as janelas escancaradas como um convite a entrar. Um barulho do nada pareceu encher a sala. Parou para olhar cada peça envelhecida pelo tempo. Reconheceu-as, com delicadeza, pegou uma a uma com receio de as desmanchar nas suas mãos pequenas, manuseou-as com dose dupla de carinho. Como se tivesse vivido ali, subiu as escadas devagar como se carregasse vida dentro do ventre. Um cansaço a anunciar a lua nova da maternidade. Breve iria gritar a dor de dar à luz. A vida iria ser duplamente vivida. O quarto com a cor do primeiro papel que forrou a primeira noite de amor, a segunda, a terceira...noite após noite sentiu-se mulher. Mulher, mãe, amante; todas as noites num papel principal. Após as nove luas a dor gritou aos céus. Rasgou a madrugada, chorou o cansaço, lágrimas de felicidade acarinharam e amamentaram a frágil criatura enrugada com feições conhecidas de alguém muito próximo. Escorregou até conseguir sentar-se amparada pelos anos que foram muitos desde aquele dia. Suavemente fechou a porta. Saiu de mansinho como se o mundo estivesse no berço da vida. No espelho do corredor viu um rosto, não o dela, mas de uma outra mulher. Compreendeu que fora passado, o presente estava fora daquelas paredes.
Sentou-se no jardim, olhou para as mãos, um fino anel brilhava num compromisso eterno. Mulher de muitas vidas, entendeu que por breves instantes a espiratualidade descera até si como uma bênção. Sentiu-se Maria, Maria plena de graça e vida, por ela, abraçamos o passado e o presente a cada momento do dia






Célia M Cavaco, In DESVIOS












Arte: Pinterest