sexta-feira, 29 de junho de 2018



Houve uma noite que  adormeceu de cansaço, adormeceu sem sequer chegar à cama.No chão, perto da lareira, o corpo tombou como um ramo de árvore quebrado pelo vento.O fogo dançava perante os seus olhos quase fechados.O rumor dos galhos num crepitar sinfónico fez com que o sono vagueasse  antes da hora. Caiu extenuada  de puro cansaço.Um cansaço sem justificação intimidava-a mais que o habitual.
Adormeceu pura e simplesmente, ali naquele recanto entre a lareira e a parede frontal onde os livros possivelmente olhavam de espanto para o corpo que habitualmente antes de adormecer os folheava e os puxava de encontro ao peito dando-lhes uma carícia de pura gratidão.Os livros tinham-lhe ensinado a ser grande,tão grande que mantinha por eles um puro afecto tamanha era a gratidão pelos livros seus professores em muitas horas onde sem absolutas certezas procurava  serenidade para as  incertezas.Uma escola  de  letras e frases aprendidas em cada gesto minuciosamente manuseado.Por cada livro, cada folha virava página um respeito quase religioso.Um dia,há muito tempo,quando ainda era menina,quase criança teve o primeiro livro nas suas mãos pequenas.Uma história triste estava ilustrada nas folhas brancas e coloridas.Foram ali as suas primeiras lágrimas derramadas num choro compulsivo e solitário.Ninguém entenderia a razão do seu choro,como poderia explicar que sem saber ler tinha entendido a história pura e simplesmente pela ilustração.Era criança,e as crianças nunca entendiam as letras até entrarem para a escola.Quis  aprender a ler,a mãe não  a podia ajudar,era uma primorosa gestora do lar,não tivera tempo enquanto menina para aprender a ler.Apenas aprendera a trabalhar.Escondeu o livro debaixo da almofada,seria por muito tempo o seu maior segredo.Quando aprendeu a ler tinha  curiosidade por toda a ilustração que emoldurava as capas de todos os livros.Aprendeu a protege-los com papel transparente. Durante muito tempo os livros foram os primeiros e únicos amigos que estavam presentes nos dias menos bons.Desde esse dia,começou a coleccionar livros, tantos que nem a mala de cartão conseguiu se ajustar para num cantinho levar pelo menos o primeiro que ainda guardava religiosamente.Um dia,prometeu a si mesma que os recuperaria e os levaria para onde quer que fosse.Acordou,quis arrastar-se para a cama, mas a sonolência ainda primava pelo sono ainda recente.Aos poucos as pálpebras encerraram-se como se o sonho comandasse a noite.Mal fechou os olhos,viu que ao lado estava uma moldura dourada.Um único retrato,só um, porque não permitia que as lembranças lhe recordassem a viagem do tempo.Tempo, é talvez a única coisa que hoje a incomoda. Gosta de certezas,o tempo não lhas dá, por isso, há um litígio constante entre si e o tempo.O retrato olha-a como se a visse pela primeira vez, retribui o olhar com alguma nostalgia.Há quanto tempo,pergunta intimamente como se respondesse a si mesma  num silencio onde apenas o fogo da lareira teima em dançar naquele sonho e sono que a adormece...
A seguir aos livros foste ele o seu maior amigo,talvez o único que melhor entendeu o seu olhar,olhar nostálgico, dizia ele  quando queria entender o seu silêncio.Silêncio que nem ela entendia a razão.Sempre lhe faltou qualquer coisa para  a complementar...há razões que o próprio coração desconhece.Será assim até encontrar o que possivelmente e inesperadamente há-de chegar sem se fazer esperar.Mesmo a dormir deu por si a sorrir,recorda o primeiro dia em que o conheceu,foram as suas mãos que a conquistaram, uma sedução à primeira vista.Recorda de perguntar o que o levou a querer falar com ela e ainda hoje estar longe mas tão perto sempre que à chamo à noite antes de adormecer.Acha que até chega a ser uma oração.Quero-o perto,e...absurdamente sabendo-o no outro lado onde ela ainda não está preparada para fazer a viagem do reencontro.
Uma brisa inesperada fez com que acordasse,ali, ao lado,o livro estava pousado como que esperando contar o final do sonho...






Célia M Cavaco,In Desvios







Arte:Carla Cascales