terça-feira, 24 de outubro de 2017




Coisas minhas
É inexplicável este meu gostar pelo o Outono.Gostando das outras estações,é no Outono que me sinto realizada emocionalmente.Desenraizada das minhas origens,é no Outono que regresso às lembranças de menina,adolescente,e sobretudo de mulher.
Recuo...quando menina,levava na mão uma moeda de um escudo com o propósito de esperar os pescadores que atracavam na doca e comprar berbigão.Sei que levava para casa um saco cheio. A mãe esperava-me em casa com meu irmão, na cozinha grande, o fogareiro aceso.Cada um de nós recebia metade de um limão para temperar o berbigão assim que ele abrisse na chapa grande que fazia uma espécie de pequena mesa redonda.Era a nossa delicia no início do Outono.Sabia, e tinha a percepção, de que no outono o tempo era rápido a chegar à época natalícia.O meu primeiro presente de natal foi uma caneta de tinta permanente.Nunca entendi como o menino jesus soube que uma caneta de aparo viria a fazer parte do meu crescimento como pessoa.Ainda tenho essa caneta que foi colocada no sapatinho pelo menino jesus, a mãe mandava-nos colocar os sapatos na chaminé grande com um fundo de chegar ao céu.Quantas vezes olhava para aquela chaminé esperando ver a passagem dos presentes dos outros meninos.Pensava eu que em cada chaminé o menino fazia uma estação se serviço para descansar e ler as cartas com todos os pedidos de crianças bem comportadas. Já o sapatinho que obrigatoriamente tinha de colocar na chaminé em véspera de natal era de má vontade.Aqueles sapatos de verniz preto eram feios e pontiagudos,e para meu desgosto, a mãe tinha pedido ao sapateiro para pôr nas extremidades uns protectores para os proteger do desgaste.Como poderia eu estragar os sapatos se eles passavam a maior parte do tempo dentro da caixa de compra?... Aquela sapataria Limpinho durante uns anos foi o meu calvário.Os sapatos que eu gostava ficavam sempre na montra a gozar com o meu sofrimento recalcado. 
Por algum motivo não gostei durante muito tempo de sapateado.Talvez aquele adorno que me fazia andar devagar com medo de escorregar fosse a causa.Já adolescente e um pouco senhora do meu nariz ,tornei-me rebelde,sofria as consequências,mas acumulava vitórias que ninguém desconfiava.Subia a rua do Município com uma ligeira euforia,no final da rua,esperava-me a audácia,um pequeno ramo de laranjeira ajudava-me a ser destemida.Foi durante um tempo o meu baloiço secreto.Como eu era feliz naquela árvore que enfeitava o largo da Sé.Nunca poderia ter sido tão corajosa se junto da árvore não houvesse dois degraus que me ajudavam no alcance daquele galho tão importante para a minha secreta valentia.Os anos passaram,e não tantos assim,comecei a ter outros gostos que ainda hoje guardo bem perto do coração.O cheiro das primeiras laranjas,chegava da escola e comia cada laranja com um gosto que arrepiava quem estivesse por perto.Como podes comer essas laranjas tão azedas?
Era precisamente o ácido que me satisfazia.Ainda hoje gosto das primeiras laranjas que aparecem na árvore.Poucos terão o privilégio de apanhar directamente da árvore e comer assim, simplesmente...
Já nas primeiras chuvas de outono, com a leveza do primeiro frio,o rosto colado no vidro da janela saboreando o aroma do café quente acabado de fazer na cafeteira.A Mercearia Aliança era a causadora daquele vício da senhora minha mãe que mo passou como uma nobre herança.A primeira paixão deu-se no outono,como me tornei vaidosa ... Os laços no cabelo foram por assim dizer a minha forma de me declarar adulta.Gostava e não me importava de demonstrar que gostava daquele, que, quando passava por mim, eu quase me engasgava só por dizer olá...estás bem? eu estou,e tu?...esperaras por mim à saída da última aula?
Espero sim...
Um namoro de adolescente num outono dos meus treze anos.
As estações passaram rápido,os anos aceleraram pressa demais.Cresci para outra paixão que foi diferente,de adolescente tornei-me em senhora dona.Uma mulher adolescente com a responsabilidade de saber respeitar essa paixão de um outono adulto de todas as responsabilidades.O primeiro e único Outono onde deixei as folhas a marcarem cada página de um livro por escrever. A primeira escrita tem nome,depois outra,e outra...até acalmar-me nesta minha maturidade ainda rebelde.Hoje,com leves fios brancos que se impõem a emoldurar-me a idade, vivo um outono diferente.Inquieta por natureza,procuro a felicidade nesta jovialidade que tanto eternizo numa busca incessante de procurar-me nesse outono maduro onde sei não estar só.Preciso de pouco,mas inevitavelmente preciso muito desse abraço,desse beijo, onde me possa refugiar sempre em precise aquecer o coração.Por cada ruga que há-de chegar sem aviso prévio, precisarei desse carinho na hora certa.Precisarei sempre de um para que possa regressar ás raízes da estação que me viu nascer.Outono!...









Célia M Cavaco,In Desvios