terça-feira, 11 de abril de 2017






A saudade impõe-se nas mais pequenas coisas.O verbo sentir é conjugado na primeira pessoa consentindo à saudade instalar-se num encontro de nostalgia; permitindo que distância, outra aliada da saudade faça um percurso ao encontro das ausências. Viajar até à rua da casa amarela, subir as escadas de encontro à infância, remexer nas gavetas procurando arrumar o tempo de coisa nenhuma. Ouvir o sino da igreja anunciando a hora da missa no domingo de Páscoa. A mãe trabalhando num esforço heróico os quilos de farinha, juntando especiarias e aromas; mel, canela, erva doce ,vinho do porto e os ovos apanhados pela manhã na capoeira improvisada.Os seus braços cansados ajudaram no levedar da massa que depois dava o folar da Páscoa cozido no forno de lenha em tachos na padaria no largo de São Pedro.A janela onde eu espreitava a menina Carminho,uma menina solteirona muito aprumada.A Carminho cheirava a sabão azul e branco,as suas mãos brancas como a cal impregnadas de um cheiro intenso de lexívia lavavam quilos de roupa à mão para entregar no Hotel Faro.A sua mãe, a Dona Maria do Carmo,era uma senhora imponente com o cabelo arranjado e penteado esmeradamente com um carrapito forte e saudável que fazia inveja às Senhoras Donas que iam ao salão da Olímpia, cabeleireira nova lá na rua, tinha vindo do Paris de França.A Dona Maria do Carmo impunha respeito com a sua bengala sempre pronta para as pancadas de Molíere. A vizinha do caminho de ferro,senhora muito senhora do seu nariz era a esposa do Sr. que trabalhava longe e só vinha a casa aos fins de semana. A Alzira,a senhora,não era senhora porque não era casada.Tinha um amigo que a visitava muitas vezes e todas cochichavam a pouca vergonha daquela amizade. Cá pra mim tinham era inveja da Alzira com cabelo forte e negro vestida de vermelho com bolas pretas à sevilhana.Coitada da senhora esposa do amigo da Alzira que não era senhora porque não era casada diziam à boca cheia de pudor descarado.Um dia a Alzira desamigou-se do tal amigo e foi um deus nos acuda a apagar as lágrimas da Alzira que agora tinha a conselho das donas de casa lá da rua detrás do numero vinte dois arranjar um homem viúvo que lhe desse segurança e bem estar.Um dia a Alzira fugiu a salto para França.Nunca mais vi a Alzira cigana como lhe chamavam as más línguas. Na rua da casa amarela no numero vinte e dois,e nas traseiras da casa onde o mundo era diferente aos olhos de uma criança mora a saudade infantil da menina que espreitava o mundo à sua maneira...










Célia M Cavaco, in Desvios