segunda-feira, 15 de outubro de 2018




Um dia, quando crescer, voltarei para  explicar como  teimosamente lembrei  do meu tempo de criança solitária, e de muitas outras recordações, tentarei explicar como foi...
Como o tempo passa...sem dar por isso,ou talvez não,dou por mim a recordar as tranças pretas, que cabelo negro eu tinha,tão negro que era cor de asa de corvo.Mas antes,recordo do cabelo escuro ser penteado em caracóis feitos pelos dedos ágeis da mãe antes de ir para o trabalho. Tempos esses,olhando para o espelho,os olhos avançam à saudade do rosto sem nada que não fosse só a pele macia,e os olhos que tanto falavam sem ninguém dar por isso procuravam dialogar medos e receios próprios da idade.
No quarto nunca houve essa boneca que tantas crianças recordam,no quarto, apenas a secretária e a primeira caneta de tinta que ainda hoje descansa no estojo azul escuro com letras douradas como decoração.Um pouco mais tarde o livro,o primeiro livro de leitura,depois outro e mais outro...
Muitos dos livros nem sequer eram de leitura infantil,mas,estimava-os como se fossem amigos imaginários.Apenas um dos livros despertava em mim uma especial atenção, o livro do meu amigo judeu,livro velho e surrado de tanto ter viajado,pelo menos era o que julgava a minha teimosa imaginação; anos mais tarde soube da história desse amigo judeu, que muito tempo depois,e antes de eu saber como iria ser quando fosse grande me ofertara com o meu primeiro colar de pérolas. Pérolas e livros...muitos anos depois,a música,a música num disco tão pequeno, mas tão grande admiração me despertou para o reino dos sentidos.Sem saber explicar, aquela música era um bálsamo para os meus  dias tristes. Havia muitas vezes dias tristes,dias de silêncio onde teimava viver no mundo dos sonhos onde tudo me era permitido sonhar sem querer ser nada,apenas sonhar que quando fosse grande haveria de voltar a visitar o meu mundo infantil e compreender o porquê de muitas perguntas que antes não tiveram resposta.
Sentia saudades da criança,mas sentia mais saudades do tempo de agora que estava a viver pressa demais.Tudo em excesso, nem tudo foi perfeito,nem tudo foi errado.Ambos os caminhos foram feitos com opção de regressar para compreender o porquê das diferentes escolhas. Ainda frente ao espelho,as tranças pretas dão lugar a um novo penteado de mulher adulta,a criança, está ali naquele olhar entre o espelho e o regresso ao tempo perdido, entre idades e o avançar da  maturidade  que de tempos, a tempos, a caneta de tinta azul voa entre o papel e a mão firme pela audácia de não querer envelhecer,já que além do rosto com as primeiras rugas que denunciam um tempo próximo,serão as mãos a denunciar a idade que teima em avançar sem permissão de parar no tempo;  naquele dia de promessa feita, prometi, voltar a ser aquela menina que cresceu para contar como foi...







Célia M Cavaco,In Desvios