Dos meus tempos de menina,lembro as tardes de Outono. Aquele cheiro que parecia frio.Agora penso,o frio tem cheiro? Para mim tinha um não sei quê,que eu identificava como frio. Chegar a casa,beber um café de saco com leite,ficar por detrás dos vidros, ver o mundo a passar aos meus pés,só porque a janela era alta.Tanta coisa se passava ali naquela rua.Conhecia toda a gente,todos eles tinham uma história imaginada por mim.O senhor que todos os dias passava solitário para se sentar no banco do jardim,decerto era viúvo,não tinha nem filhos nem ninguém que o acompanhasse.Esta era a minha versão; Depois,pelas 17:30 todos os funcionários da câmara saiam,também esses eu lhes inventava uma vida...
Era assim todos os dias,conhecias-os a todos.Eles nem davam por mim,nem sabiam das minhas estórias.Uma vez...sempre à mesma hora passava uma senhora muito distinta,roupa preta muito elegante,sabia que morava no que é conhecida a Vila Adentro.Por muito que me esforçasse não via nada da casa onde morava,era enorme, imponente de tantas janelas que faziam um corredor em toda a rua. Comecei por lhe chamar a Senhora Condensa. Um dia,a Senhora Condensa meteu conversa comigo,e combinou comigo uma hora para a visitar,tinha uma coisa para entregar à minha mãe. Fiquei eufórica,ia conhecer a casa estranha,estranha pela imponência e por estar sempre tudo fechado.À hora marcada lá estava eu pequena mas cheia de curiosidade.Toquei naquela mão enorme que estava na porta.Demoraram,fiquei com medo de se terem esquecido de mim. A porta abriu,e lá estava a senhora condensa que me convidou a entrar e levou-me para um jardim...Fiquei muda,o jardim tinha tantas estátuas, todas elas tinham repuxo de água.Fiquei maravilhada,afinal,devia de ser mesmo Condensa,ninguém normal vivia num palácio. O meu encanto durou pouco tempo,porque a senhora Condensa entregou-me um cesto cheio de peixe para dar à minha mãe. Ela disse solenemente,diga à sua mãe que são frescas,os pescadores oferecem-me tanto peixe que não conseguimos comê-lo todo e é pena estragar-se sabendo que há pessoas que não o podem comprar. Ah,frescas,porque eram cavalas.Recordo da alegria da minha mãe a arranjar o peixe. Pior,foi quando as tive de comer,peixe estranho aquele...
Os anos passaram,voltei a ver a senhora Condensa com a mesma idade de sempre,a idade que eu lhe tinha dado, cem anos e mais alguns...
Depois,fui eu que desapareci,nunca mais soube das minhas personagens,nem da senhora Condensa...
A propósito,hoje comi cavalas cozidas como a senhora minha mãe as fazia. Adorei,souberam-me a todas as lembranças da senhora Condensa e de todos os outros personagens.Recordei-me de todos...
Célia M Cavaco / Desvios