Não quer nada,pouco precisa para estar em paz. Só as saudades de coisas tantas ensombram os dias que conta pelo calendário dos dedos para exercitar a memória.O acordar com o canto dos pardais pela madrugada.O corpo cansado pelo calor húmido da noite,espreguiçar sem vontade de acordar. Abandonar ideias e fazer-se ao mar antes que o calor queimasse a pele. Mergulhar naquele mar extenso sem ninguém por perto. As horas que passavam lentas pela cesta da tarde debaixo do cansaço dos mergulhos. Regressar à casa que não era sua,mas era a casa da infância. Nas gavetas havia coisas esquecidas que faziam lembranças. A noite, que era tarde pela sol que ainda permanecia no horizonte. O regresso dos pardais, para dormirem no desassossego das vozes e brincadeiras das crianças, que choramingavam colo pelo cansaço das brincadeiras durante a estafa dos baldes de areia para construírem castelos. O fim da noite, que já era dia, apesar do do céu estrelado. Dormir a resmungar que amanhã não; o cansaço não deixava... Depois, acordar e voltar ao ciclo vicioso das curtas férias de verão que se viviam como não houvesse amanhã. Tudo era intenso,as manhãs,as tardes,as noites para dali a dias o cansaço do regresso a pedir férias outra vez. Era uma agitação saudável. Agora a casa que não era sua,mas era a da infância tinha outras pessoas.Pessoas estranhas que não conheciam os segredos ali habitados. As gavetas que já não existem; as paredes que sabem todas as histórias. A casa ficou sem a alma das férias. As pessoas são mais calmas,moram todos os dias no mesmo marasmo. Nem sonham que ali moraram bonecas,comboios que apitavam. Que a chaminé gigante guardava os sapatinhos pelo natal. Que as rabanadas tinham cheiro de canela com açúcar. O café era feito na cafeteira com a água a ferver. O almoço era uma algazarra,era sempre o prato preferido,os outros não interessavam. A casa,que não era sua,mas era a da sua infância, tinha todos os cheiros e lembranças alteradas pelos anos,tinha a velhice a entrar por ela; o medo de regressar,e não ter as gavetas onde mexer memórias. Pouco precisa para viver em paz,mas as memórias persistem em dar-lhe uma intranquilidade a que tem de se habituar. O tempo está a entrar no corpo. A agilidade da juventude adulta está a quebrar dia a dia.O olhar no espelho é de outra, não é mais a frescura da adolescência,nem da mulher jovem de outros tempos.Pouco mais tem que as memórias de ontem com as lembranças de hoje.A casa amarela, que não era a sua, mas era a casa da sua infância e adolescência, fica na mesma rua,com o mesmo número; com outras pessoas,com outras histórias por contar...
Célia M Cavaco / Desvios
Arte: Colin Fraser
Arte: Colin Fraser
