sábado, 16 de outubro de 2021


 


Sou introvertida no que toca a partilhar memórias. Guardo-as só para mim, raramente, as introduzo num diálogo com outros. Quando isso acontece, esqueço que deixo o meu silêncio a descoberto. Não preciso de nada, excepto  existir, e nessa existência vagueio pelas minhas vidas anteriores deixando que as memórias se tornem transparentes. Uma vez, já nem sei quando porque tudo me parece ontem, acordava de madrugada para viajar rumo ao sul. A excitação era uma incómoda adrenalina que não me deixava dormir as horas necessárias para fazer uma condução calma. Tudo era um emaranhado de sacos, malas, e muito que não servia para nada. Os miúdos levavam a tralha toda, era da praxe levar livros, baldes,  literalmente  lavava-se  a casa às costas .O carro grande, nesta altura do ano tornava-se um mini, as crianças iam atrás numa euforia que às tantas toldava-me o juízo. Queriam, porque queriam, aquele espaço entre bancos para verem o que se passava à frente. Entre risos e choros, as horas eram infindáveis. Parecia que atravessamos o deserto para chegar ao oásis dos afectos.  Numa estação de serviço, ou  na célebre paragem do Canal Caveira descansar a adrenalina era urgente. Ali encontrávamos pessoas conhecidas que relatavam o cansaço das férias. Era urgente fazermo-nos à estrada. Quando surgiu a auto estrada com caminho directo, a monotonia desta fez-nos regressar à estrada secundária. Aquilo sim, era a direcção certa para rumar ao sul prosseguindo a viagem em plena alegria. Depois, era espreguiçar e numa alegria contida tocávamos à porta vermelha do número vinte e dois. A mãe ao cimo das escadas sorria de alegria, não havia lágrimas nem lamurias, apenas o corre corre de bagagem e sacos escadas a cima para chegarmos aos quartos que já tinham o calor do sol algarvio. O sol era outro, a claridade era diferente. A comida que a mãe começava a preparar horas antes do sol nascer, inundava de cheiros a minha memória longínqua. A visita a todos os familiares era feita à tardinha, as horas não tinham ponteiros, tudo era vivido em modo de férias. A noite era para vadiar o cansaço do corpo escaldado de tanto sol e iodo da praia grande voltada para o atlântico. A ria era apenas a passagem para o outro lado, aqui e ali, reconhecia rostos que conhecia desde a adolescência, para  os veraneantes locais eu era uma desconhecida em férias. Esta mania de contar à imaginação histórias, fazia com que conhecesse todo o mundo através da minha janela indiscreta onde conhecia todos, e ninguém se apercebia  da minha existência. Os anos passaram, a mãe viajou para a outra margem. Tudo se desmembrou, deixei de cultivar raízes, perdi-me no conceito de ir à terra para sentir o apego do cordão umbilical. As minhas imagens moldaram-se, os sentimentos e sensações aparecem e desaparecem num abrir e fechar de olhos na saudade peregrina.
Outros lugares, outras gentes deram-me o abraço que me fez distante. Tudo termina e tudo começa de maneira diferente. Não tenho lugar para ficar, não tenho terra, também não tenho pressa de partir. Ainda agora ,após todos estes anos, sei-me entre as duas margens. Na mala de cartão o necessário para rumar ao desconhecido. Sou assim, feita de margens onde o amor me faz ficar. Descobri no silêncio uma calma absoluta, vou por aí...





Célia M Cavaco, In Desvios






Foto: Pixabay